Um olhar sobre a arte enquanto experiência.
Os atritos gerados no corpo do pesquisador no processo com as entrevistas, através do drama gerado por aquele acontecimento entre entrevistado e entrevistador se tornou o detonador da busca de uma cena que revelasse os acontecimentos vividos na intimidade e distanciamento daquele acontecimento. Como transpor aquela experiência para a cena? Como reverberar no público os sentimentos vividos do lado de trás da câmera? Como recorrer ao herói-migrante dentro de cada um? Estas foram perguntas que nortearam a proposta de uma encenação que se permite desdobrar-se em experiência, de fato, compartilhada, construída e desconstruída através do diálogo com a subjetividade do espectador.
A criação de um espaço cênico que dividisse a cena com o espectador foi a primeira experiência dramatúrgica realizada no processo. Um espaço que reverberasse a intimidade das entrevistas, ao mesmo tempo, que denunciasse a distancia proporcionada pela mediação da câmera é a investigação desse lugar simbolicamente íntimo e distante. Assim, surgiu a divisão do espaço cênico em dois espaços simbólicos. A portaria e o espaço da cidade. Em frente à plateia, o ator performa as narrativas recolhidas de forma fragmentada num espaço de representação de uma portaria utilizando câmeras de segurança e seu corpo diante da entrevista. O espectador ora, assume a função de porteiro juntamente com o ator, ora assume a função de entrevistador, ora é deslocado para dentro de si num processo constante de migração de sentido. Um tecido-pele transparente é o local de projeção das imagens como espaço de registro do processo, das entrevistas e como representação simbólica da cidade.
O público assume assim, dois olhares acerca da cena, o da intimidade proporcionada pelas narrativas e o do distanciamento provocado pela relação entre o corpo do ator e a imagem em vídeo projetada no tecido-pele. Uma dramaturgia que reverbera na forma o percurso vivido pelos migrantes. Os entrevistados saíram de um meio rural onde a narrativa encontra campo fértil nas relações humanas para um meio violentamente urbano, em que a velocidade e a impessoalidade do cotidiano transborda numa profusão de imagens, fundindo-se no corpo do ator o conflito dessas realidades, a de outrora e a do “agora”. Assim, pretende-se à espera, condição sine qua non da portaria, uma relação dialógica com o espectador, vislumbrando lhe um mergulho na existência através de uma experiência estética composta por narrativa, memória e os elementos performativos da dramaturgia.
A utilização do audiovisual (vídeos) cria um campo de colisão das memórias do processo, do autor-ator e dos autores-porteiros. A imagem fílmica tornou-se um campo de tensão acerca das propostas de uma cena fundamentalmente teatral. Os vídeos fazem um recorte de mundo e angula o olhar. Nessa zona de batalha, se deu o lugar do embate entre cena e vídeo. O encontro para este campo de batalha foi o corpo do ator. Um corpo migrante dilacerado pela desterritorialização e pelo cotidiano da cidade-oceano, São Paulo. Assim, nessa zona de conflito entre cena teatral e vídeo o ator performa, atravessando as imagens e por elas sendo atravessado. Um tecido fino, como uma pele permeável às imagens é o lugar de projeção que se estende no meio do espaço cênico. Uma lâmina de água a reverberar as imagens oníricas do fundo do oceano-cidade. Debaixo das imagens, atrás do tecido-membrana, o ator reverbera em desconstrução e fragmentação do corpo e das narrativas as metáforas do corpo nômade do homem da cidade. Reiterações, desconstrução das narrativas, projeção de imagens no espaço e no corpo do ator são os recursos a serem utilizados para a dilatação da dramaturgia.
A dramaturgia é composta por três camadas narrativas: os porteiros, o autor (ator-dramaturgo) e do processo de construção da obra. O espectador é recepcionado pelas imagens do ator, durante o treinamento energético desenvolvido no processo, projetadas através da captação por câmera de segurança e projetadas no espaço de fora da cena. A ideia de abertura do treinamento é uma proposta de aquecimento do olhar do espectador para a cena, bem como, a de reverberar uma camada substancial desse processo de (re)criação, o corpo. O corpo enquanto rito de passagem. A migração do ensaio para a cena e o compartilhamento desse ato com o espectador.
A construção ser-lugar ocorre a partir da experiência. Através da percepção, sensação, cognição, representação e imaginação o lugar passa a ser internalizado e constitui-se como parte integrante do ser. A experiência tem como meio o corpo, grande mediador dessa relação (MERLEAU-PONTY, 1971). Assim, o trabalho sobre o corpo buscou transformar em poética a relação do corpo com a cidade. Os espaços percorridos, o trânsito, o esfacelamento, a desterritorialização migrante tornam-se material para a pesquisa de uma prática psicofísica em que exercícios plásticos de seccionamento do corpo são metáforas das jornadas diárias pela cidade. A ampliação e recolhimento do corpo no espaço torna-se uma alusão às entradas e saídas entre a casa e o espaço urbano. A utilização de verbos de
ação (lançar, atirar, saltar, etc.) torna-se um caminho de dilatação do performer, quase como num devaneio sobre o ritmo da cidade. Um corpo poético que resiste em suas jornadas mantendo-se como lugar a ser habitado e espaço praticado constantemente é o canal entre os corpos durante o rito desta experiência.
PORTAR(IA) SILÊNCIO é um projeto de espetáculo teatral que busca no embate dialético com o espectador a (des)construção do sentido através da experiência com uma dramaturgia que se entende como um campo de relações, bem como, a ampliação da experiência de leitura da obra a partir dos registros da memória do processo. Uma experiência que prima por levantar questões em detrimento de respostas. Somos migrantes por excelência. Migramos quando seguimos ao teatro no intuito de sentir-se comunidade em um ato. Migramos no tempo e no espaço. O teatro é uma arte migrante a celebrar a imaterialidade do tempo. Morte e Vida. Vida e Morte. O silêncio das portarias dos edifícios revelados como baús de memórias e imagens que habitam a poesia de cada um. Um olhar de poesia e estranhamento lançado sobre o silêncio, a invisibilidade e a solidão do ser humano migrante que existe dentro de cada um.