A PORTAR(IA)

Uma metáfora do silêncio

           A migração é vista em termos fenomenológicos a partir da forma como o fenômeno aparece na experiência. Nesse sentido, os aspectos existenciais são o foco da pesquisa desse trabalho, entendendo-os a partir da materialidade, produção social e a corporeidade do ser migrante. A experiência tem como meio de mediação o corpo e é a partir dele que o lugar de destino passa a ser internalizado. O sujeito constrói o lugar e ao mesmo tempo é construído por ele, segundo o geógrafo e filosofo Edward Casey. As migrações contemporâneas definem o nomadismo vigente em tempos líquidos. O homem passa a existir no atravessamento da velocidade e mobilidade das relações. A cidade habitada se torna paisagem percorrida em flashes restando-lhes o relato da experiência em desalinho com o tecido urbano habitado. Como transformar o espaço urbano em “lugar praticado”, segundo Michel Certeau? Segundo Certeau, não existe oposição entre a ideia de lugar e espaço, como os “lugares” aos “não-lugares”, de Marc Augé.

           A ideia de não-lugar foi criada pelo antropólogo francês Marc Augé na qual o “não lugar” é definido como um espaço de passagem, diametralmente oposto ao lar, representado por espaços públicos de rápida circulação. Sozinho ou junto com outros o habitante do não-lugar mantém uma relação contratual com estes espaços que é representada por símbolos, como por exemplo, ticket de metrô, um cartão telefônico, carteira de motorista, etc.

           No depoimento pessoal presente na construção da dramaturgia deste projeto a ideia de “não lugar” se encontra na perspectiva de vida instaurada após o processo migratório vivido. O nomadismo diário de uma grande cidade revela em seu cotidiano pequenas migrações onde o cidadão-Ulisses realiza jornadas diárias passando a existir na vida em trânsito constante nos assentos do trem, metrô ou ônibus. Os “não lugares” investigados na antropologia tornam-se matéria-prima para uma reflexão poética. Nos extremos da cidade-oceano-paulicéia moram grande parte dos migrantes que formam a identidade múltipla da metrópole, nos espaços de passagem, a vida pulsa sem a ideia de pertencimento, e a memória se torna um exercício constante de preservação. A ideia recorrente, as lembranças, os sonhos, os desejos antigos e os novos tomam conta do pensamento. A poesia tornou-se um lugar de resistência a impessoalidade do espaço em trânsito. Um olhar poético como meio de territorialização e transformação do espaço da cidade num “lugar praticado”. Nesse sentido, este sentimento de não pertencer, de estar na vida em suspenso é um estado emocional do migrante, devido ao processo de descolamento e perda de referenciais geográficos e culturais. A ideia de Augé a cerca do espaço físico (aeroportos, hotéis,...) é desenvolvida na pesquisa dramatúrgica do espetáculo como espaço simbólico localizado no plano da subjetividade, no intimo do ser migrante. Uma provocação e nomadismo de conceitos em busca de uma cartografia existencial, de um entendimento ontológico da relação do homem nômade contemporâneo com o tecido urbano percorrido diariamente. Um olhar sobre a cidade a partir de dentro, sobre a relação do cidadão com o lugar de destino, aquele cuja escolha implica na mudança para o desejo, para o lugar que contempla a realização plena dos devires. As implicações existenciais detectadas nas narrativas e entrevistas realizadas com migrantes-porteiros de edifícios da cidade de São Paulo revelam esse lugar de passagem no íntimo de cada cidadão que vê por trás dos vidros das portarias a cidade movimentar-se no esvair do tempo de sua jornada de guardião da passagem do espaço público e privado. Um não lugar de dentro.

            A portaria tornou-se a metáfora dessa ausência de território de identificação. Um lugar de passagem. O porteiro, um guardião de portas do lugar-casa para o espaço-movimento. Um ser invisível na sua condição de trabalhador da espera e da solidão a observar as entradas e saídas das jornadas diárias de outros tantos Ulisses que assim como ele retorna a casa ao fim do dia para o merecido descanso. A espera, a invisibilidade e a solidão da portaria refletindo as implicações existenciais de um processo de desterritorialização vivido através da migração e um olhar sobre o espaço da cidade e seu organismo vivo de migrações diárias.

           A pesquisa da dramaturgia desta Portar(ia) começou na historia de vida do ator/perfomer visto que utiliza do componente autobiográfico para a composição da obra. Nesse sentido, a (re)construção de um corpo poético esfacelado pela experiência de desterritorialização tornava-se um exercício de resistência e compreensão da cidade.

Portar(ia) Silêncio  é um espetáculo de teatro documentário com um forte caráter processual, visto que este é camada dramatúrgica levada a cena, e como tal, presa a relação da obra com a fruição como parte integrante de um processo constante apropriando-se de um discurso estético onde a autoria e seu processo de criação estejam presentes, revelando-se de forma não-linear propondo ao espectador construir-se dentro da obra. Nesse sentido, alguns parâmetros tornaram-se especificidades no campo da experiência da pesquisa, criação e montagem:

*        A construção de uma dramaturgia escrita que reverbere e se configure juntamente com a cena, num processo de criação que nasce da cena ao texto estruturada a partir de padrões de ação, pesquisa corporal, leitura de textos filosóficos e um roteiro dramatúrgico, entendido como mapa de produção;
*        A pesquisa de um trabalho atoral onde esteja reivindicado uma presença mais ativa na fabricação de sua arte;
*        A busca de uma receptividade de natureza especular num processo de interlocução e provocação ativa do espectador;
*        A ideia performativa do teatro enquanto experiência-evento e não representação;
*        A migração do espectador de um campo de representação para outro através da utilização de signos fluídos e instáveis;
*        A ampliação da experiência de leitura da obra a partir da criação da (trans)migração da obra para outros meios de representação: internet (não lugar), instalação cênica, produção de videos e workshop;
*        Criação de estratégias de discussão e debate sobre a obra: conversa ao final das apresentações, depoimentos recolhidos em cartas e  experiências performáticas com os espectadores;
*        A utilização do audiovisual na cena como um mecanismo de fragmentação dos signos e reverberação dos registros, garantindo à cena uma relação mais profunda com o percurso de sua criação e o documento desse percurso;
*        Promover uma ocupação poética em torno da obra nos locais que ela estiver sendo apresentada através de workshop, debates e instalação criada a partir dos registros do processo;

Ficha Técnica:
Pesquisa, criação, dramaturgia e atuação: JOÃO JÚNIOR.
Orientação Artística e roteiro: LUIZ FERNANDO MARQUES.
Preparação Corporal e direção de movimento: JOANA LEVI.
Edição de videos: LINA LOPES.
Trilha Sonora: VITOR SANTHIAGO.
Espaço Cênico: CRIAÇÃO COLETIVA.
Produção Executiva: RECY FREIRE.